Análise da Gambiarra

por Bruno de Almeida

 

Gambiarra nasce como uma obra visual enraizada em questões contemporâneas pertinentes à sustentabilidade, à participação cívica e à potência da criatividade coletiva. Através de uma narrativa não linear, este livro transforma a bicicleta — um objeto do cotidiano — em um símbolo multifacetado de organização social e ambiental, convidando o leitor a explorar a capacidade humana de adaptação e reinvenção diante do caos e da precariedade.

A cena inicial do livro apresenta uma casa em desordem, com objetos espalhados e um senso de confusão generalizada. Esse cenário reflete a vida moderna, onde o excesso de informações e demandas frequentemente sobrecarrega o indivíduo, estabelecendo um ponto de partida para a transformação criativa. A desordem inicial torna-se um espaço fértil para invenção.

O cotidiano fragmentado, representado visualmente pela casa e pelos objetos que ganham vida, sugere que, mesmo em momentos de crise e caos, existe a possibilidade de reparação e reconstrução. Através da gambiarra—o ato de improvisar soluções a partir dos recursos disponíveis—o livro sinaliza que a aparente desordem, em sua complexidade, é capaz de fazer germinar soluções inventivas, individuais e/ou coletivas, abertas ao novo.

Conforme a narrativa se desenrola, as ferramentas que estavam dispersas e sem propósito tornam-se agentes de transformação. Ao dar origem a novas invenções, desdobram a função do reparo, abrindo novas possibilidades para o que antes tinha uma função limitada. A bicicleta, nesse contexto, que se transforma gradualmente ao longo da narrativa, passa a operar como um catalisador para reorganização da comunidade e da cidade. 


Ao vermos a cena em que vizinhos se aproximam para ver o que está acontecendo, observamos como manifestações criativas inspiram aqueles que estão ao nosso redor. Surpreendidos pela inventividade, começam a inventar suas próprias bicicletas, fortalecendo suas relações sociais ao inspirar-se uns aos outros. A participação do sujeito na transformação da comunidade, é um convite para reflexão sobre questões amplas de democracia e participação cívica. A intervenção dos moradores no espaço urbano depende da participação de todos. Nesse caso, o improviso deixa de ser uma resposta individual à precariedade para se tornar uma forma coletiva de criar soluções com o que está à disposição. A democracia, nesse contexto, surge quando as pessoas se engajam diretamente na criação e gestão de seu ambiente, assumindo a responsabilidade pela transformação do local em que estão inseridas.

A bicicleta, que no início era um objeto funcional, torna-se o epicentro de uma cidade mais sustentável e harmoniosa, carregando não apenas os personagens, mas também ideias e possibilidades. Esse processo de transformação, se revela em páginas mais organizadas e verdes, o que pode ser lido como uma metáfora para as práticas de sustentabilidade e justiça climática. A bicicleta é reinventada de inúmeras maneiras, transportando flores, animais e até elementos de fantasia, como a lua ou relógios, sugerindo que a sustentabilidade não é apenas uma questão técnica, mas também de imaginação e criatividade. Nesse contexto, a sustentabilidade é apresentada como um processo dinâmico de adaptação e improvisação, em que cada indivíduo contribui de forma única para o todo.

A potência criativa é exaltada ao longo da obra, mostrando que a capacidade de reinventar e criar a partir do que está disponível se torna um motor de transformação. A cena em que a ciclista cai e quebra um ovo que carregava, mas logo vê esse ovo assumir protagonismo na sua experiência, simboliza a resiliência e a capacidade de recriação após a perda ou fracasso. Essa dinâmica de transformação é essencial para a construção de um futuro inclusivo, onde improvisação e adaptação se tornam práticas cotidianas, que moldam a forma como nos relacionamos com o entorno. 


Ao encontrarmos as cenas finais do livro, onde a cidade inteira se move em cima de uma única bicicleta, repleta de personagens excêntricos e objetos improváveis, somos convidados a celebrar a potência da criação conjunta. Essa imagem de uma cidade em movimento, onde todos contribuem através de perspectivas pessoais, nos lembra que o futuro inclusivo que buscamos só será alcançado através da cooperação e da participação ativa de todos os membros da comunidade. A bicicleta coletiva é uma metáfora para a interdependência e a co-criação, onde cada um de nós tem um papel vital a desempenhar.

Quando abrimos a última página encontramos a síntese visual do arco conceitual da narrativa. A dualidade entre os personagens - de um lado um ciclista em movimento e, do outro, a quietude quase meditativa da casa personagem -  nos oferece uma história que termina com um retorno ao que foi visto no início: a casa, o caos criativo, o movimento das formigas, sugerindo que esse processo de improvisação nunca termina, mas está sempre em fluxo. O ciclo de criação e recriação, central à gambiarra, é aqui celebrado como um fenômeno inevitável e necessário para a construção de uma sociedade mais justa, criativa e sustentável. 

Gambiarra, abre diálogos poéticos para abordar questões do mundo contemporâneo: a capacidade de improvisar e criar a partir da precariedade, a importância da participação cívica e a busca por soluções sustentáveis em um mundo cada vez mais caótico. Através de uma narrativa visual engenhosa e evocativa, o livro convida o leitor a reconsiderar seu papel na construção de um futuro mais justo e sustentável, onde desordem e invenção caminham lado a lado para enfrentar desafios urgentes do ser humano.



Bruno de Almeida (1995), nascido em Muzambinho, Minas Gerais, Brasil, é pesquisador e artista visual radicado no Porto, Portugal. Graduado em Design de Moda pela Universidade de Franca (São Paulo), possui mestrado em Design de Produto pela Universidade do Porto, onde atualmente cursa doutorado em Design. Sua prática artística explora a ilustração como ponto de encontro entre arte, literatura e design. Seu trabalho reflete sobre território, identidade e pertencimento, criando espaços que fomentam o diálogo e o engajamento entre comunidades e instituições.

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