Livro aproxima a nova geração da singularidade de Antônio Conselheiro

Por Nilma Gonçalves

Quando passava em frente a casa onde morou Antônio Conselheiro, o menino Osvaldo tinha a sensação de estar diante de algo da ordem do indecifrável, como quem se pergunta como é possível o mandacaru ser cheinho de água, estando no meio da secura do sertão. Nascido em Quixeramobim, Ceará, mesmo lugar de Conselheiro, sua infância foi toda atravessada por histórias e causos sobre aquele misterioso personagem, herói para uns, vilão para outros, que, sem querer, deu um nó nos primeiros anos da República do Brasil, ainda no século XIX. Agora, o já adulto Osvaldo Costa Martins apresenta seu olhar sobre os fatos, em ‘Antonino Peregrino’, editado pela Solisluna, com ilustrações de Luci Sacoleira

“Sempre tive curiosidade sobre aquele homem que era falado, na maioria das vezes, no sentido pejorativo, mas que tinha fundado uma outra cidade, que culminou numa guerra e em uma tragédia. As portas de sua casa eram sempre enigmas para mim, como os enigmas que a infância coloca para as crianças ou que as crianças colocam para infância e para o mundo”, afirma o escritor, que é também psicanalista e se valeu, em alguma medida, do ofício para escrever sobre um personagem complexo e intenso, bem como um momento brutal. Esse foi um dos desafios para produzir a obra, voltada para todas as idades, mas que dialoga muito bem com o público infantojuvenil.

Narrada em primeira pessoa, a publicação aproxima o leitor da singularidade de Conselheiro. Segundo Osvaldo, a psicanálise colaborou na composição da narrativa, sem esconder o conflito, o ódio e a agressividade presentes nesse episódio da História do Brasil. Ajudou também na perspectiva de humanizar Conselheiro. “O que tem de beleza é que ele não era herói, não era sobre-humano. Era um homem com seu sofrimento, que conseguiu, a partir das suas tragédias e misérias cotidianas, fazer um laço social capaz de subverter a realidade”, avalia o autor. 

Para o poeta e historiador cearense Fabiano dos Santos Piúba, que assina o texto de abertura de ‘Antonino Peregrino’, “Osvaldo Costa, por alguns instantes, escreve como se tomado fosse por um Guimarães Rosa ou um Manoel de Barros. Mas num é não. Ele escreve como Osvaldo Costa mesmo, com suas metáforas de pensamentos que nos fazem peregrinar pela paisagem nordestina e pela vida de Antônio Conselheiro”. 


Ilustrações e texto se entrelaçam e dialogam 

À potência do texto soma-se a beleza comovente das ilustrações de Luci Sacoleira, arquiteta e artista visual cearense, “pessoa da cidade com o corpo no sertão”, como ela mesma se define. Para criar o projeto, Luci revisitou suas memórias afetivas sertanejas, quando passava férias na fazenda da família, em Boa Viagem, que fazia parte de Quixeramobim. “Me inspirei nas paisagens, nas pedras, na chuva que cai de repente e deixa tudo verde. Lembrei do meu pai, figura religiosa que lia a bíblia depois do cochilo pós-almoço, e convocava os filhos para lerem para ele. Essa relação com o divino, que pra gente no sertão é muito natural”, ressalta. Em seu trabalho, é possível encontrar referências nas cenas bíblicas, na xilogravura e na arte naif, mas também em obras como O Beijo, de Klimt, e As Tentações de Santo Antão, de Bosh. 

Palavras e figuras se entrelaçam para contar sobre um momento histórico que parece muito atual. “As questões implicadas em Canudos estão presentes também hoje: a segregação, a tentativa de silenciamento do Nordeste pelo Sudeste, a exclusão, a concentração de renda, de terra, o racismo, a xenofobia, as mentiras produzidas por certos centros de poder para esvaziar a força popular, tudo isso está em jogo. O Arraial de Belo Monte, fundado por Conselheiro, teve um final trágico, mas a história continua”, garante Osvaldo Costa Martins. 

Lançado pela primeira vez em 2018, através de um edital de cultura do Ceará, o livro foi um dos finalistas do Prêmio Jabuti 2019. Agora em 2021, os autores procuram a Solisluna para  editá-lo novamente: Valéria, que conhecia Luci Sacoleira e ‘Antonino Peregrino’, acatou com alegria publicar, desta vez, com algumas adaptações de formato e acabamento. “É uma obra que tem a nossa cara, eu gosto muito da narrativa poética de Osvaldo, o texto tem uma fluência e uma riqueza literária enormes. As ilustrações de Luci são lindas e com esta força e potência nordestina. Eu tenho um orgulho imenso por termos publicado esse livro”, comemora.

 

Assista a live de lançamento com os autores 

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2 comentários

Só vi e já estou encantada! Parabéns, desde já, pelo resgate histórico, imprescindível que chegue às crianças!

REGINA CELI DE MORAES BORGES

Sou filha do mesmo sertão, esse, de Antônio e Osvaldo. Somos contemporâneos, como diz meu amigo Cláudio Ivo, quando quer falar de pessoas que nascem no mesmo lugar – nem insisto em dizer que é"conterrâneo", Ivo, conterrâneo! Assim, sinto na pele essa história, mesmo sem tê-la lido… Ainda assim, quero um exemplar. Me interessa, essa história. Escrevi uma também, para crianças! Como obtê-lo? De repente, até conheço Osvaldo, e ele à mim… contemporâneos que somos. Gratidão. Aguardo retorno.

Maria Castro

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