O céu como mapa: as autoras de 'Pelo Caminho das Estrelas' falam sobre conexões e ancestralidades

O céu como mapa: as autoras de 'Pelo Caminho das Estrelas' falam sobre conexões e ancestralidades

Entre ciência, poesia e tradição oral, o livro das autoras Mariana Mckenzie,  Mariana Mazzi e Bruna Martins é uma travessia entre mundos e saberes.

Pelo caminho das estrelas, novo lançamento da Solisluna Editora convida o leitor a embarcar em uma jornada luminosa pelos céus do mundo. Através dos olhos curiosos de Kulu, uma pequena andorinha em migração, o livro revela como diferentes povos e culturas olham para as mesmas estrelas e delas retiram histórias, saberes e guias para a vida.

Em terras geladas, Kulu encontra uma amiga inuíte que compartilha segredos ancestrais guardados nas constelações. No deserto, um amigo do povo Saharaui mostra como as estrelas traçam caminhos sobre a areia do tempo. E nas florestas do Sul, uma amiga Guarani Mbya ensina que o céu repete há gerações as lições de seus antepassados, onde cada estrela é uma memória viva. 

Nesta entrevista, as autoras compartilham um pouco sobre seus processos de criação e as expectativas em torno do livro.

O livro nasce de encontros entre ciência e imaginação. Como as investigações e os mistérios que você vivencia em sala de aula influenciaram na construção do universo de Kulu e suas descobertas pelo céu?

Mariana Mazzi: O universo da nossa andorinha surge do mesmo lugar que nascem as perguntas das crianças: do encantamento. Na sala de aula, as ciências não são apresentadas como um conjunto de leis e fatos que são passados de baixo pra cima; as crianças são convidadas a perguntar e a criar as suas próprias teorias a partir da observação. Elas aprendem que a ciência é uma construção humana para explicar o mundo ao nosso redor e as nossas culturas. Da mesma forma, Kulu percebe isso com as diferentes histórias contadas pelos seus amigos para um mesmo céu noturno, e isso mostra que a ciência e o encantamento conseguem coexistir na mente de uma criança.

Como foi o processo de transformar conhecimentos sobre o céu – que muitas vezes são ensinados apenas com fórmulas e telescópios – em uma história poética para as infâncias?

Mariana McKenzie: Sempre me incomodou a forma fragmentada e estéril com que o ensino e as disciplinas são apresentadas nos livros didáticos. Os textos, excessivamente técnicos, raramente fazem um convite à imaginação. Essa percepção se confirmou durante uma aula de astronomia. Para explicar o posicionamento das estrelas em diferentes hemisférios e as mudanças das estações, precisei buscar um recurso mais envolvente. A pesquisa me levou aos animais migratórios, e foi assim que me deparei com a viagem da andorinha-do-ártico. O próximo passo da sequência didática exigia abordar as constelações, mas o material disponível era majoritariamente eurocêntrico. Ao pesquisar a ciência astronômica de povos originários, as duas propostas — a da andorinha-do-ártico e a das constelações — se uniram de forma quase perfeita. A partir daí, a história do livro se desenhou com muita fluidez em minha mente. A experiência de ter vivenciado esses temas em sala de aula tornou o processo ainda mais natural, permitindo que a narrativa ganhasse vida.

Como você traduziu, nas ilustrações, a travessia de Kulu entre territórios e culturas tão distintas sem perder a delicadeza de cada céu? E que caminhos de pesquisa e sensibilidade guiaram suas escolhas para honrar visualmente as cosmologias Guarani Mbyá, Inuíte e Saharaui?

Bruna Martins: Para traduzir cada céu e paisagem, precisei mergulhar nas três culturas retratadas no livro. Pesquisei muitas fotos, viajei muito pelo Google Earth (amo essa ferramenta!), assisti a vídeos de pessoas de cada lugar e busquei referências nas produções artísticas de cada povo. Além disso, as autoras me enviaram uma bibliografia muito rica sobre as constelações e as cosmovisões Guarani Mbyá, Inuíte e Saharaui, que foi essencial para o processo. Nos primeiros testes, defini o estilo do livro – colagem com tinta acrílica, lápis de cor e pedaços de fotos, mapas e cartas celestes –, mas sabia que queria preservar a particularidade de cada cultura visitada por Kulu. Por isso, a pesquisa foi tão importante: para captar as cores e atmosferas de cada região e representar, de forma coerente e respeitosa, suas paisagens, constelações, roupas, objetos e hábitos.

No livro, cada povo lê o céu ao seu modo. O que você aprendeu durante a pesquisa e escrita sobre formas de astronomia que vão além das narrativas ocidentais sobre ciência?

Mariana McKenzie: Testemunhamos hoje um movimento nas escolas e entre educadores que buscam distanciar o ensino de uma perspectiva tão eurocêntrica. Durante a pesquisa, a busca por materiais realmente confiáveis foi uma jornada à parte. Na imensidão da internet, onde achamos de tudo, a insegurança sobre o que utilizar nos força a uma checagem constante de fontes. Felizmente, encontrei uma comunidade científica muito solícita. Enviei e-mails para diversos pesquisadores, em diferentes locais do mundo, cujos contatos estavam em artigos científicos. Fiquei positivamente surpresa com a vontade de colaborar e compartilhar conhecimento. Foram muitas reuniões on-line, em diferentes fusos horários e em línguas variadas. Porém, essa experiência também me trouxe uma percepção clara: muitas vezes, o conhecimento é produzido e compartilhado apenas para pessoas que já tenham conhecimento. Ainda faltam formas de tornar esses saberes mais palatáveis e acessível para leitores de todas as idades e sem conhecimento técnico na área.
Afinal, é nas crianças e nos adolescentes que precisamos plantar essa sementinha do prazer em investigar e descobrir o mundo.

Se você pudesse escolher uma única ilustração para resumir o espírito do livro, qual seria e o que ela diz sobre a jornada de Kulu?

Bruna Martins:Uma das minhas ilustrações preferidas é a de Naya e Kulu deitados observando as estrelas, logo antes da viagem de Kulu. Ela nasceu em uma fase em que eu estava muito mergulhada nas cartas celestes antigas – no céu dessa imagem, usei uma carta do Hemisfério Norte de 1870, e as estrelas que as personagens observam foram desenhadas por Galileo Galilei em Sidereus Nuncius, o livro em que ele registrou pela primeira vez suas observações astronômicas com o telescópio. Gosto muito dessa imagem porque acho que ela transmite a grandiosidade desse céu estrelado, uma imensidão tanto espacial quanto temporal. É nesse céu que se sobrepõem saberes e culturas ao longo do tempo, alguns dos quais Kulu encontrará ao longo de sua travessia.

Kulu aprende olhando para cima, para o céu. Para você, o que a educação ganha quando ensinamos as crianças também a olhar para cima, a sonhar?

Mariana Mazzi: Ensinar as crianças a olhar para cima é ensiná-las a deslocar o olhar para o que está além, invisível ou ainda desconhecido. Quando olham para o céu, elas percebem que fazem parte de algo muito maior, e isso desperta tanto a curiosidade científica quanto a capacidade de imaginar e sonhar. A educação ganha quando não se limita ao chão, quando permite que a aprendizagem seja também um exercício de assombro. Olhar para o céu é lembrar que o conhecimento começa no desejo de compreender e no encantamento com o mistério. É o sentimento de awe.

Entrevista realizada pela equipe do Correio Lunar, boletim informativo da Solisluna, em novembro de 2025.


 

 

 

0 comentários

Deixe um comentário

Os comentários precisam ser aprovados antes da publicação.