A BELEZA DO NASCIMENTO PELOS OLHOS DE UMA CRIANÇA
Enfermeira obstetra e parteira urbana, Tanila Amorim é mãe de Gabriel, 14 anos, e Kadu, 8. O primeiro viu o irmão nascer, em casa. Foi seu relato espontâneo que despertou na autora a ideia do livro De onde veio meu irmão?, sua estreia na literatura. Para a família, questões relacionadas ao parto nunca foram um tabu.
“Percebia o interesse dos meus filhos quando eu chegava dos partos e eles perguntavam como havia sido. Sobretudo, quando notava que eles entendiam e naturalizavam temas relacionados ao processo de gestar, parir e amamentar”, explica ela, que coordena o Coletivo SobreParto, equipe multiprofissional de assistência ao parto domiciliar planejado, em Salvador.
Com seu trabalho, além de preparar as futuras mamães para realizarem o parto natural em casa, Tanila também levanta a importância da participação das crianças durante todo o processo de preparação para o nascimento do seu irmão ou irmãzinha: “Falar o que tem que ser dito de forma clara e honesta, mas sempre com o respeito necessário, inclusive o direito à informação real que toda criança merece. Se todos nascemos, saber sobre nascer deveria ser assunto de interesse de todos.”.
“Pensarmos no parto enquanto um evento natural e familiar nos aproxima do paradoxo que é restringir esse assunto aos adultos”
‘De onde veio meu irmão?’ fala de um parto domiciliar, a partir da perspectiva de uma criança, seu filho. Por que escrever sob essa perspectiva e não sob a sua, de mãe?
Quando eu pari meu caçula, o primogênito esteve presente, ele viu e viveu esse processo com toda a compreensão e sentimentos de um menino de 6 anos, na época. Perceber como ele viu todo o processo do meu parto me alertou para a riqueza que é a percepção natural das crianças, sem a nossa condução tão “adultizante” das coisas. E quando eu contava às crianças, filhas e filhos das famílias que atendia, sobre o relato do meu parto pela visão do meu filho, notava que eles conectavam melhor, como criança explicando para crianças coisas que adultos não sabem verdadeiramente explicar. Eu já tinha escrito pra mim esse relato, como hábito natural da minha maternidade, que gosto de guardar em palavras os casos e causos dos meus meninos para que o tempo não as apague. Então foi só mesmo me dar conta que eu já contava essa história, e que tê-la num livro poderia ser muito melhor, afinal além das palavras, tem as imagens.
Sua narrativa não subjuga a inteligência das crianças, você não recorre a um texto infantilizado, não usa metáforas para amenizar nomes que, normalmente, não fazem parte do vocabulário das crianças (como vagina), embora os elementos lúdicos estejam todos ali. Como foi escrever para crianças sobre um assunto que, normalmente, é restrito aos adultos?
Acho que essa é uma marca na minha maternidade muito forte, que vem da Tanila mulher mesmo. Falar o que tem que ser dito de forma clara e honesta, mas sempre com o respeito necessário. Inclusive o direito à informação real que toda criança merece. Se todos nascemos, saber sobre nascer deveria ser assunto de interesse de todos!
Pensarmos no parto enquanto um evento natural e familiar nos aproxima do paradoxo que é restringir esse assunto aos adultos.
Preparar uma criança para a chegada de um irmão ou irmãzinha é um desafio. O desafio fica maior quando nesse processo a criança também assiste ao parto ou é exatamente o contrário?
O desafio está em nos prepararmos, enquanto adultos, para darmos espaço a esse assunto. Falar de parto, de forma natural, é reforçar o protagonismo de quem faz o parto, a mulher, e essa perspectiva não é a que culturalmente estamos habituados. Uma gestação leva tempo, e obviamente isso não é à toa. A construção do conhecimento sobre o processo do parto deve fazer parte do pré natal familiar, e sem dúvida, está incluído nisso a preparação dessa(s) criança (s) mais velha (s). Além de ser uma possibilidade riquíssima de diálogos sobre os processos da vida. Em um parto domiciliar, esses diálogos construídos entre as crianças, a família, a equipe, ao longo da gestação, são alicerce para um ambiente seguro, respeitoso e de muito afeto no dia do parto. Passamos a ser pessoas conhecidas, no espaço seguro para essa criança, que é seu lar, vivendo um processo já construído ludicamente para elas, que é o parto.
Qual foi o impacto no seu filho após essa experiência?
Embora meu filho seja filho-de-parteira, ele nunca foi filho de parturiente. Ele viveu a chegada do irmão com muito respeito, e o que eu percebo é que para ele foi tão natural, mas tão natural, que foi como um dia normal e, nesse dia normal, o irmão estava nascendo, e só isso. Simples assim. E essa simplicidade consigo estender para as demais crianças que estão nos partos que acompanho. É muito incrível como no geral eles interagem, dentro das especificidades de cada idade, claro, mas sempre sendo crianças, com curiosidade, alegrias, lágrimas e tudo mais que cabe a infância.
Como é feita essa preparação? Quais profissionais participam do apoio junto à criança?
Preparar uma criança para estar num parto começa com a preparação dos pais para esse querer, e o que eles têm de elementos e recursos para tornar o respeito a essa presença uma possibilidade. Primeiro, é preciso entender que na realidade dos locais de nascimento aqui no Brasil, o parto domiciliar é o espaço onde a presença das crianças é possível. Depois, embora o parto seja da mulher, o desejo da participação da criança precisa ser desta criança. Isto posto e organizado, cabe a família construir essa segurança para o dia do parto, afinal uma família segura das suas escolhas vai conseguir conduzir esse espaço. No entanto, o suporte da equipe de assistência ao parto, apresentando os elementos relacionados, chamando-os para ouvir o bebê na barriga, dando a atenção que demanda uma infância, vai aproximando e criando vínculos.
O quão importante é para as crianças participarem como protagonistas desse momento tão especial para a família?
Eu observo que todas as ações da vida onde as crianças são incluídas com o devido respeito, elas impactam nas relações. A sensação de pertencimento tem impacto para tantas coisas na nossa vida, não é? Desde a construção da autonomia, passando pelo estabelecimento de vínculos, percebo que são reflexos importantes dessa inclusão. Acho complexo o pensamento de que: tem um irmão, um ser humano similar a mim, crescendo na barriga de minha mãe, sendo que eu não faço ideia de como essa mágica acontece, e de repente minha mãe sai de casa, e quando volta, não tem mais barriga e tem um bebê no colo. Eu fico com a sensação que é esse o entendimento das crianças. Muitas informações do âmbito do inimaginável para dar conta. Então, quão mais coerente seria ela poder ver que nascer é um processo, e não é como ir ali, deixar uma barriga na loja e trocar por um bebê.
Camila Alemany e Tanila Amorim - Foto Maína Diniz
As ilustrações de 'De onde veio meu irmão?' são de Camila Alemany. Como se deu essa parceria?
Quando apresentei os primórdios do livro para Valéria Pergentino, (editora da Solisluna), eu já tinha no meu coração um lugar de muita vontade para que as ilustrações fossem especiais. Isso porque meu filho mais velho gosta de fazer ilustrações e isso me convidou à importância de olhar para a figura do(a) ilustrador(a). E aí foi uma situação de muito imprinting, porque Valéria logo me falou da importância que a editora dá à ilustração, e de como valoriza esse profissional. Obviamente que eu fiquei maravilhada com isso. Daí ao ouvir a história, ela disse que sentia caber num perfil de uma ilustradora que ela já estava observando há algum tempo. Me mostrou os desenhos dela pela internet, eu achei lindíssimos, e disse que poderíamos pensar sim. Quando vi a foto da artista senti que a conhecia de algum lugar, mas não identifiquei de imediato. Lembro-me que saí da editora com o rosto dela na cabeça e fui resgatar da minha memória de onde a conhecia. E eis que Camila teve a sua segunda filha, há 10 anos atrás, com a assistência do Coletivo SobreParto, o qual eu coordeno, e eu já havia feito uma consulta pré-natal coletiva com ela. Nossa, eu fiquei em êxtase. Não se tratava “apenas” de uma ilustradora, era uma mulher que sabia o que meu livro falava porque ela viveu um parto, conheceu a mim e a minha profissão. Achei muito simbólico essa aproximação, muito mesmo. Sem contar que ela participou ao meu filho sobre o processo criativo para criação e desenvolvimento das ilustrações, com tanta atenção e carinho. Foi maravilhoso essa parceria para além da parteria.
Qual o seu objetivo com esse livro?
Quando eu percebi que o relato do meu filho era uma história linda e importante, quando eu vislumbrei a possibilidade de contá-la formalmente, eu escolhi dividir essas minhas descobertas ainda tímidas com uma pessoa muito querida, a quem também pude ter a honra de partejar sua segunda filha, que foi Emília Nunez. Ela me recebeu lindamente em sua casa, leu meu esboço e me disse com aqueles olhinhos vibrantes: ”Flor, isso já é um livro! A história é brilhante!!”. Então posso dizer que meus filhos despertaram em mim uma necessidade imensa de olhar para a infância, onde vivenciar os nascimentos dos “meus filhos-de-umbigo” (como chamo carinhosamente os bebês a quem tive a honra de ver nascer) só fortaleceu uma certeza que estava latente. E eu precisei seguir um caminho que nem em um processo de gestação e parto mesmo, onde primeiro escolhi uma boa doula (profissional que oferece apoio psicológico, conforto e suporte emocional e informativo à mulher durante todo o período de gravidez, parto e pós-parto), que foi Emília. Ela, então, me apresentou uma equipe de parteiras super competentes, a Solisluna e Camila. Daí, ao lado de quem escreveu essa história comigo, meus filhos e meu esposo, eu pude parir, naturalmente, a minha vontade de mostrar para o mundo a importância que o respeito à infância impacta na saúde da nossa população, porque nascer é tão natural quanto o olhar de uma criança. E tudo isso é possível de acontecer em casa.